Carta aos Professores

Aos professores do Ensino Médio que tenham em suas turmas um aluno com síndrome de Down.

                         “Não é a deficiência que define o destino da pessoa  que a tem  mas as consequências sociais dela.”  (VYGOTSKY)

A experiência de ter um aluno com síndrome de Down certamente será nova para vocês, pois há até bem pouco tempo uma criança com SD não cursava sequer o Ensino Fundamental regular. Mas no ano se 2010, no Rio de Janeiro, o número de crianças com SD fazendo o curso fundamental em escolas comuns já excedia ao das que somente frequentavam escolas especiais. Em breve já será bem maior a quantidade de adolescentes que, através da educação inclusiva, estarão cursando o Ensino Médio.

Agora é lei.
 A exemplo de todos os países desenvolvidos bem como dos mais de 160 signatários da Resolução da ONU resultante da Convenção dos Direitos das Pessoas com Necessidades Especiais – o Congresso Brasileiro, ao ratificar tal resolução em 2008 fez constar em sua Carta Magna, com status de emenda constitucional, a obrigatoriedade de inclusão de todas as crianças e todos os adolescentes em escolas comuns. Em acréscimo, assegurou àqueles que tenham necessidades especiais e estudem em escolas públicas um segundo turno com atenção diferenciada, na própria escola ou em instituição especializada.
Mas por que a educação inclusiva é lei? É lei porque as crianças e os adolescentes, sem exceção, tiveram reconhecido seu direito de acesso a uma educação que lhes possibilite desenvolver seu potencial, que lhes assegure o convívio diário com seus pares etários em uma sociedade onde atuarão como cidadão, direito a uma educação que lhes ofereça desafios a serem superados – como a todo mundo – e os meios para os superar.

As publicações científicas especializadas, principalmente aquelas do campo das neurociências, contêm pesquisas recentes (e algumas já nem tão recentes) que evidenciam a superioridade da educação inclusiva sobre aquela que, no passado, consistia na única alternativa para crianças e jovens com deficiência intelectual: o atendimento segregado em escolas especiais, tendo apenas como modelos seus colegas também “especiais”, sem desafios, com baixa expectativa e consequente baixo nível de cobrança, sem os meios necessários para desenvolver sua inteligência, sem possibilidade de conhecer o mundo instigante em que vivem as crianças normais de sua idade e para o qual estavam despreparados ao deixarem a escola. Um mundo onde também os “normais” estavam despreparados para o convívio com pessoas com déficit intelectual acentuado.

Mas as escolas estão preparadas para oferecer educação inclusiva? Agora, quando vemos pessoas com SD – ainda que poucas por enquanto – graduarem-se em nível universitário, dirigirem seus carros e suas vidas, já não se trata mais de provar a superioridade da educação inclusiva, mas sim de implementá-la bem. Cabe então a pergunta: As escolas estão preparadas para o trabalho de educação inclusiva? Não, as escolas não estão preparadas para realizar um bom trabalho de educação inclusiva. Ainda não estão. E jamais estarão se não se propuserem a aprender e já. O trabalho é longo e complexo, e não há no sistema um ponto único por onde começar. Há que começar por todos, ao mesmo tempo. Se algum ponto, porém, deva ser privilegiado, trata-se daquele que concerne a filosofia da escola. Os profissionais responsáveis pelo aprimoramento e pela implementação da filosofia da escola precisam aprender a delegar as atividades predominantemente burocráticas para assumir sua liderança no processo de educação inclusiva que é, em última análise, um processo de aperfeiçoamento de toda a escola. Sem essa liderança não se pode esperar uma boa educação inclusiva.

Aqueles que se propuseram, como profissão, a missão de ensinar precisam se dispor a aprender. Precisam estar abertos a novos desafios que incluem, também, a reavaliação de preconceitos há muito arraigados em relação às pessoas com déficit intelectual. Precisam atualizar-se nas descobertas das neurociências quanto às possibilidades de desenvolvimento da inteligência, nas novas metodologias educacionais, nos novos instrumentos como o iPad e o Wii que a tecnologia disponibiliza a cada instante, nas técnicas recentes da avaliação efetivamente realimentadora do processo de ensino aprendizagem. Aqui, igualmente, o aprimoramento do professor com vistas a realizar uma educação inclusiva reverterá, sem dúvida, em sua melhor atuação junto a todos os alunos. Ao cuidar da melhor maneira de se situar como mediador entre o saber e o aluno com SD, o professor estará também mais atento às necessidades daqueles outros alunos que, por circunstâncias as mais diversas, também necessitem de apoio para serem incluídos na turma. Sempre os há, e não são poucos. O fenômeno do bullying nas escolas, que só atualmente ganhou maior visibilidade, sempre existiu e está aí como triste exemplo disso.

Mediação

 Mediadores somos todos nós que nos colocamos favoravelmente entre o que precisa ser aprendido e quem precisa aprender. Mediadores são, por profissão, os professores. Todos nós precisamos de mediadores nos anos de escola e, na medida em que adquirimos os instrumentos do autodidatismo, passamos, gradualmente, a prescindir deles. Mas nunca o fazemos de todo: felizmente há sempre um mediador que poderá nos incitar à aquisição de novos saberes.

O aluno com SD em uma escola regular de ensino médio necessita de mais mediação do que os outros alunos. Trata-se mais de uma questão de grau do que de natureza. É aí que entra o mediador especial, cuja função é atuar sempre e somente quando necessário, adaptando o currículo às possibilidades do aluno e assim assegurando que ele acompanhe o progresso da turma o mais próximo possível. O mediador especial precisa ter a sensibilidade do monitor que corre nas olimpíadas para olímpicas ligado ao corredor cego por um fio: se correr de menos, ele o atrapalha; se correr demais, ele o derruba. Não há, pois como preestabelecer limites para a performance do aluno. A ninguém é dada a faculdade de dizer “além daqui este aluno não vai” ou “para quê ele precisa estudar química?”

Um currículo adaptado e uma mediação especial, porém, não asseguram, por si sós, uma educação inclusiva. Ao contrário, tais fatores poderiam até mesmo constituir formas de exclusão se algum professor se julgasse menos responsável por este aluno do que pelos demais e delegasse ao mediador a parte da responsabilidade que lhe cabe.
 A atuação efetiva dos professores das diferentes matérias junto aos alunos com necessidades especiais é um fator decisivo no processo da educação inclusiva. Cada professor deve dedicar ao aluno especial, no mínimo, a mesma atenção que ele dá aos demais alunos. Esta prática, aprimorada ao longo dos anos, vem se provando perfeitamente viável, sem sobrecarga para o professor – que conta com o mediador –  e com evidentes benefícios para o aluno especial, inclusive para a tão importante autoestima.

Trabalhos em grupo e trabalhos independentes

A participação de um aluno com déficit intelectual em trabalhos em grupo constitui instâncias ímpares de educação, tanto para ele quanto para os demais membros da equipe. É sabido que a comunicação horizontal (aluno-aluno) por vezes prova-se mais eficiente do que a comunicação professor-aluno. Ao explicarem para o colega o foco central do trabalho, os demais alunos estarão também esclarecendo melhor para si mesmos o que deve ser feito e como. Estarão também aprendendo a lidar com a diversidade humana, o que lhes será muito útil por toda a vida.
Os trabalhos individuais, com base no currículo adaptado, serão propostos pelo mediador, em estreita articulação com o professor. Devem se manter o mais próximo possível do trabalho realizado pela turma, porém com um nível de dificuldade adaptado.
Há ainda a acrescentar a possibilidade de trabalhos independentes sobre os assuntos estudados, trabalhos estes realizados fora da escola, com o apoio da família, em forma de entrevistas, reportagens fotográficas, maquetes, relatos de visitas a museus e exposições, dentre outros possíveis trabalhos.

Avaliação
A avaliação do desempenho escolar terá por base os objetivos definidos para o aluno especial dentro dos temas trabalhados na turma, considerando-se os conhecimentos de que dispõe, seu potencial estimado e a proposta curricular para a série. Dados estes parâmetros, a avaliação se fará de maneira real, e desta forma, além de reorientar a continuidade do trabalho pedagógico atenderá às exigências do registro acadêmico.
Assim sendo, os testes e provas serão adaptados, submetidos previamente aos professores e realizados, quando necessário, em tempo maior. Testes, provas e trabalhos serão sempre entregues e recolhidos pelos professores das diferentes matérias, ainda que estes possam contar com o mediador para avaliá-los.

A escola tem diante de si o desafio de oferecer uma educação inclusiva de qualidade e precisa fazê-lo cuidadosamente, com a participação das famílias, avaliando acertos e erros, alicerçando a prática em conhecimentos teóricos e dela extraindo novos conhecimentos e práticas. Somente deste modo a escola será capaz de cumprir com sua responsabilidade de construir um modelo de educação inclusiva para a nossa realidade.

O QUE É A SÍNDROME DE DOWN?

Segundo a Organização Mundial de Saúde, a síndrome de Down, não é uma doença. É o resultado de um acidente genético ao qual se associam um déficit mental em relação aos padrões de normalidade, algumas características físicas e problemas de saúde que variam de indivíduo para indivíduo. Decorre de um acidente genético na divisão dos cromossomos que gera a presença de um cromossomo extra (trissomia) no par 21.

Sabe-se atualmente que as diferenças observáveis no desenvolvimento intelectual de pessoas com síndrome de Down dependem muito mais dos determinantes sociais do que de fatores genéticos, o que torna inviável qualquer classificação em graus de “comprometimento” e absolutamente indispensável sua estimulação intelectual. Não se podem estabelecer limites para o desenvolvimento intelectual de pessoas com SD, como, de resto, para pessoa alguma.
Até bem recentemente, os estigmas que se interpunham entre a grande maioria das pessoas e aquelas com síndrome de Down conduziam ao isolamento destas, à falta de estímulo, à baixa expectativa e, obviamente, a tudo de negativo que disso resultava.
Mas esta situação vem se modificando dramaticamente com os recentes avanços da ciência, que apontam para a inclusão como importante fator de desenvolvimento.
Isso explica por que, no passado, as pessoas com síndrome de Down raramente se alfabetizavam e hoje são capazes de estudar regularmente e viver de maneira bem independente, chegando, mais recentemente, a completar estudos de nível superior e atuar como cidadãos e profissionais.
Pesquisas já nem tão recentes – Vygostsky, Luria, Feuerstein, Bruner e outros – apontam para o fato de a inteligência, inclusive a de pessoas com déficit intelectual, ser algo que se constrói através das experiências vivenciadas. Para as crianças e os jovens, são a família e a escola os promotores insubstituíveis dessas experiências. A inclusão em escolas regulares de alunos com síndrome de Down é a maneira correta de oferecer a estes alunos as oportunidades de desenvolvimento intelectual, afetivo e social a que têm direito como qualquer criança ou jovem.
Em contrapartida, a inclusão propicia aos demais membros da comunidade escolar a oportunidade de aprender a conviver com as diferenças, de respeitar quem as tem mais acentuadamente, e de, no convívio com elas, enriquecer seu próprio universo afetivo. A educação inclusiva é uma educação para a vida, que a todos beneficia. A escola não pode se eximir desta responsabilidade.
Em vários lugares do mundo, principalmente nos países mais desenvolvidos, a educação inclusiva já se faz há mais tempo, mas no Brasil ela ainda constitui uma relativa novidade. São ainda recentes as leis que asseguram o direito à educação na escola regular (não especial) a pessoas com necessidades especiais. Ainda são muitas as escolas que tentam se esquivar ao cumprimento da lei alegando estarem “despreparadas” para o trabalho inclusivo, ou apenas aceitando o aluno para um convívio social com outros de sua idade, sem se responsabilizarem por seu desenvolvimento intelectual.
Não é este, em absoluto, o propósito da educação inclusiva.
Leis, por si sós, não podem assegurar a educação inclusiva. Tampouco se pode transformar a escola sem que esta se disponha a aprender e a se transformar. Na verdade, a Escola , ao se engajar efetivamente nesta proposta, está abrindo caminhos na educação brasileira. Está fazendo história.
A escola tem diante de si o desafio de oferecer uma educação inclusiva de qualidade e precisa fazê-lo cuidadosamente, com a participação das famílias, avaliando acertos e erros, alicerçando a prática em conhecimentos teóricos e dela extraindo novos conhecimentos e práticas. Somente deste modo a escola será capaz de cumprir com sua responsabilidade de construir um modelo de educação inclusiva para a nossa realidade.

Todos desejamos fazer de nossos jovens pessoas melhores, mas só o faremos na medida em que estivermos, nós também, abertos a novos desafios e à reavaliação de nossos próprios preconceitos.

Maria Alice Máximo
fevereiro de 2011